A Residência
Pelas Lentes da Fotografia

Uma Residência no Morumbi Pelas Lentes da Fotografia Moderna — Os Álbuns da CBPO

A relação entre arquitetura e fotografia remonta ao século 19. Desde sua apresentação pública, em 1839, a fotografia integrou-se muito rapidamente e, por vezes, de forma estruturante, a diversos campos do saber. A documentação de expedições científicas – naturalistas, etnográficas, arqueológicas –, antes praticada por desenhistas e pintores, pouco a pouco cedeu espaço para a técnica fotográfica. 

A fotografia desempenhou papel central no campo da preservação do patrimônio arquitetônico, que se estrutura à medida que crescem as cidades com a revolução industrial. Nas capitais europeias, as grandes obras urbanísticas da segunda metade do século 19 foram registradas por fotógrafos contratados especialmente para isso. Charles Marville (1813-1879) fotografou Paris pouco antes das grandes intervenções planejadas e executadas entre 1853 e 1870, na gestão do Barão Haussmann. Charles Negrés (1820-1880), Edouard Baldus (1813-1889) e Gustave le Gray (1820- 1840) fizeram registros memoráveis da primeira restauração da Catedral de Notre Dame, projeto dos arquitetos Jean-Baptiste Lassus e Eugène Viollet-le- Duc. August Stauda (1861-1928), um dos expoentes da fotografia de arquitetura e paisagem urbana austríacas, desempenhou papel semelhante em Viena, que também sofreu transformações urbanísticas profundas na segunda metade do século 19, com a demolição das muralhas que a cercavam e a construção da Ringstrasse e de seus emblemáticos edifícios da administração pública, além de museus. Stauda registrara a “velha Viena” milhares de vezes. 

No Brasil, não foi diferente. Em São Paulo, Militão Augusto de Azevedo (1837-1905) notabilizou-se com seu álbum comparativo (1862-1887), assinalando as transformações urbanas. É também de sua autoria o registro das obras de construção da ferrovia Santos-Jundiaí, especialmente no trecho da serra do mar. Já́ na virada para o século 20, o fotógrafo Guilherme Gaensly (1843-1928) tornou-se, nas palavras do arquiteto e historiador da arquitetura brasileira Carlos Lemos, o fotógrafo da São Paulo eclética. Contratado pelo poder municipal para documentar as novas obras de urbanização e arquitetura na região dos Campos Elíseos e Higienópolis, também trabalhou para a Light & Power com amplo e detalhado registro das instalações de trilhos para bondes elétricos. Igualmente emblemática é a obra de Marc Ferrez (1843-1922) no Rio de Janeiro e em outras capitais brasileiras do Nordeste, assim como a de Augusto Malta (1864-1957), já no início do século 20, contratado pelo poder público para registrar as intervenções urbanas na administração de Pereira Passos (1902-1906). 

A documentação fotográfica se tornou estruturante também para as práticas preservacionistas instituídas pela Superintendência do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - SPHAN em 1937, como demonstra Eduardo Costa em sua tese de doutorado sobre os arquivos fotográficos dessa instituição (2018). 

Em meados do século 20, encontra-se já consolidada a tradição de documentação fotográfica de obras urbanísticas, de engenharia e de arquitetura, sustentada por uma gama cada vez maior de fotógrafos e estúdios especializados. A difusão dessa produção também foi incrementada ao longo da primeira metade do século 20, especialmente por meio de revistas especializadas em arquitetura e livros de fotografia sobre cidades. 

Restringindo-nos ao quadro brasileiro, podemos citar a série de publicações de Gilberto Ferrez (1908-2000) sobre o Rio de Janeiro e cidades do nordeste, cuja coleção se encontra no Instituto Moreira Salles. Trata-se de centenas de álbuns, geralmente vinculados a efemérides locais, e de revistas de arquitetura que se tornaram referência para a discussão e sedimentação da arquitetura moderna. Essa produção intensifica-se no Brasil na década de 1950, graças à expansão do mercado fotográfico, que se deve às melhores condições de produção gráfica e à regularização do fornecimento de insumos e maquinários importados para o parque gráfico nacional. Além disso, houve a presença de fotógrafos estrangeiros já́ bem estabelecidos comercialmente, que aportaram no país antes e durante a Segunda Guerra Mundial, como Werner Haberkorn (1907-1997), Hans Gunther Flieg (1923), Marcel Gautherot (1910-1996), Peter Scheier (1908-1979) e Jean Manzon (1915-1990). 

Essa importante produção fotográfica nos é legada hoje por coleções e núcleos de acervos preservados em bibliotecas, institutos e museus, como a Revista Acrópole, as coleções Werner Haberkorn e Militão Augusto de Azevedo no Museu Paulista da USP e os arquivos de Hans Gunther Flieg, Peter Scheier, Jean Manzon e Marcel Gautherot no Instituto Moreira Salles. É assim que conhecemos as fotografias do Morumbi e da Fundação Maria Luisa e Oscar Americano, preservadas no acervo da instituição, fontes importantes para entender a formação do bairro e o estado original do interior e do entorno da residência da família Americano. Da Companhia Brasileira de Projetos e Obras – CBPO, a Fundação possui oito álbuns com fotografias originais nas dimensões aproximadas de 18 por 24 centímetros, coladas em papel cartão escuro. Os álbuns trazem gravados os títulos referentes aos conteúdos e a marca da CBPO, indicativo de que a documentação era prática recorrente e integrada ao processo de trabalho da construtora. São eles: Paineiras do Morumby – bairro residencial de elite; Obras de urbanização do Jardim Leonor – Morumby; Escola prática de agricultura “paulo de lima correia” em Guaratinguetá́; Sanatório “Miguel Pereira” Mandaqui; Inauguração – Trevo de 32ª. 

A organização narrativa dos álbuns e o tratamento formal dispensado aos elementos de cada imagem respeitam, sem surpresas, as convenções consolidadas na trajetória da fotografia de intervenções urbanísticas: tomadas panorâmicas intercaladas com tomadas parciais e preocupação em apresentar processos – registros de áreas com terraplanagens seguidos de registros de ruas pavimentadas, por exemplo. No caso dos álbuns relativos aos então recém-criados bairros Paineiras do Morumby e Jardim Leonor, os registros nos dão a medida do ousado empreendimento imobiliário, claramente dirigido às elites urbanas, como o próprio título anunciava. 

No final da década de 1940, já encontramos anúncios de venda de lotes no Jardim Morumby, pela Companhia Imobiliária Morumby. O modelo de loteamento era semelhante ao da Companhia City, privilegiando residências e lotes maiores. A criação dos novos bairros, afastados da região central, em área muito arborizada, representa um aspecto da metropolização de São Paulo, que se aprofunda na década de 1950. Representa, também, a prevalência do transporte automobilístico para os grupos com maior poder aquisitivo, o que viria a se tornar um marcador social de classe no Brasil. Os álbuns, enquanto instrumentos de documentação das obras de terraplanagem e pavimentação, focalizavam o arruamento como elemento central da dinâmica urbana, exatamente como faziam-no as propagandas de corretoras imobiliárias. 

Na propaganda o “Paraíso”, conjuga-se como “exuberante” a vegetação às ruas asfaltadas, guias e sarjetas. O automóvel indica o meio preferencial de transporte, ainda que seja mencionada a única linha de ônibus existente, passando a cada meia hora. 

A partir da década de 1950, a região do Morumbi torna-se uma das referências para a moderna arquitetura residencial paulistana. A residência de Bratke (1951-52) e a que ele projetara para Oscar Americano (1952-54) sintetizavam uma concepção moderna de morar em relação com a natureza, que fundamentava a própria filosofia dos bairros-jardins, como aponta Dall’Alba: “Em sua concepção de paisagem, a natureza é encarada como um elemento de composição, sobre a qual a intervenção deve ser controlada, de forma a tirar partido do seu potencial estético para criar vistas variadas e realçar aspectos pitorescos. Em termos de configuração urbana, tais ideais eram traduzidos no desenho de ruas sinuosas”. 

Os álbuns fotográficos conformaram as imagens urbanas à dinâmica de preservação, de destruição e de construção de espaços e obras viárias, de modo que a construção discursiva da fotografia paulatinamente estabeleceu uma relação de sinergia com a arquitetura moderna. A linguagem fotográfica caracteriza-se por enquadramentos que propõem inversões de escala, fragmentando o motivo principal, e por uma retórica que busca desestabilizar a visão clássica da paisagem oitocentista, equilibrada pela linha do horizonte, ao empregar rotações de eixo e pontos de vista ascensionais. No registro de edificações, a valorização da forma simples, pautada pelo geométrico, e a maneira essencialista de abordar volumes no espaço aproximou a fotografia da arquitetura moderna. As revistas especializadas em arquitetura fizeram da fotografia uma plataforma estratégica para a difusão internacional de sua linguagem e de suas propostas conceituais. 

No período de criação dos bairros que hoje formam o Morumbi e da construção da residência de Maria Luisa e Oscar Americano, as revistas Acrópole e Habitat atuaram intensamente na difusão da arquitetura por meio da fotografia. A revista Acrópole, por exemplo, divulgou inúmeras residências projetadas por arquitetos filiados à escola moderna, cuja implantação foi fartamente registrada fotograficamente. Com pouco ou nenhum texto, as matérias dedicadas a projetos seguiam um padrão: contavam com uma média de 6 a 12 registros fotográficos, além de plantas baixas e desenhos arquitetônicos de fachadas ou detalhes. Em 1957, ambas as revistas divulgaram em suas páginas a residência de Maria Luisa e Oscar Americano. Na Habitat, ela figura na edição número 45 (páginas 30 e 31) e, na Acrópole, na edição número 226 (páginas 358 a 362). A residência também foi objeto de matéria na AD Arquitetura e Decoração (número 12, 1954, n.p.), na AU Arquitetura e Urbanismo (número 43, 1992, página 75) e na Projeto Design (número 330, 2007, páginas 50 a 61). 

Na Acrópole, a residência é documentada em 12 registros por Leon Liberman, fotógrafo colaborador da revista de 1938 até meados da década de 1960. O conjunto fotográfico original, na forma de álbum, integra o acervo da Fundação Maria Luisa e Oscar Americano. As imagens são preciosas por registrarem o interior da casa e seu mobiliário. 

Liberman soube interpretar a relação entre habitação e natureza, idealizada no projeto de Bratke. O uso da luz ressalta a modulação da estrutura que se desenvolve entre recuos, aberturas e vazios e convida o espectador a perceber a troca entre interior e exterior, propiciada pelas grandes superfícies envidraçadas. 

O contraste tonal explicita o contraste entre formas geométricas e estruturantes, tratadas com liberdade no espaço aberto. 

O enquadramento dos registros valoriza os caminhos sinuosos, as curvas da piscina, os jardins que ladeiam e invadem a residência. 

Vemos no arranjo formal os mesmos princípios do bairro- jardim, desenhado para passeios automobilísticos em meio à vegetação – como na propaganda, que compara o bairro ao paraíso. 

Hoje, a imagem do Morumbi comporta outras referências, ainda que se mantenha o traçado das ruas. O perfil das residências não mais se restringe à arquitetura moderna, a cidade tendo alcançado o subúrbio da elite. Com isso, vieram os muros e condomínios fechados, criando-se ilhas isoladas, não mais caminhos integrados. 

Solange Ferraz de Lima