Arte Sacra


{"time":1747675667828,"blocks":[{"type":"paragraph","data":{"text":"O núcleo de arte sacra da Fundação Maria Luisa e Oscar Americano é variado, abrangendo fragmentos retabulares, alfaias de culto oficial, tocheiros de igrejas, oratório-ermida, balaustradas e santos domésticos. Seu ápice são as obras de imaginária coletiva, surgidas da criatividade de grandes artífices vernaculares, das oficinas conventuais aos ateliês laicos. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Embora a arte sacra luso-brasileira tenha se vinculado às tendências e estilos praticados na Itália, França, Alemanha e Espanha em tempos de expansão marítima, revoluções tecnológicas e trocas culturais, certas características estéticas e fisionômicas permaneceram apegadas a gostos medievais atávicos. O chamado ranço gótico e orientalismos influenciaram as imagens da Península Ibérica no Renascimento, desdobrando-se posteriormente nas temáticas devocionais brasileiras dos períodos Maneirista, Barroco e Rococó́. A princípio, temos corpos atarracados e olhares achinesados. O uso da pedra de Ançã, de calcária, alabastro, faiança esmaltada, terracota e lenhos estucados, policromados e dourados formaram um repertório de modelos adaptados aos suportes plásticos coloniais americanos: o barro para santos de conventos, ossos substituindo marfins, talcita nas lapinhas, ouro, prata e gemas locais nos objetos sagrados de rito, pedra-sabão nas fachadas e madeira estofada para os vultos eruditos. A associação de marfins a madeiras regionais seguia a fruição do Caminho das Índias, que aportava esporadicamente no nordeste do Brasil: crucifixos indo-portugueses eram remontados em cruzes de jacarandá́ da Bahia e ornamentados com crisólitas, pedrarias e metais preciosos, participando da fé cotidiana nos solares urbanos e fazendas. A chamada arquitetura chã, com frontais despojados e interiores rebuscados, tornou-se recorrente nas igrejas de Portugal e no litoral do Brasil, somando-se à utilização massiva da cantaria e de revestimentos de azulejos, heranças comerciais de mouros e judeus na ocupação peninsular."}},{"type":"paragraph","data":{"text":"A escola portuguesa de Alcobaça, famosa pelo uso extensivo de pedra e terracota nas faturas monásticas e nos bustos relicários, foi transplantada ao Brasil no começo do século 17 pelas mãos do mestre Frei Agostinho da Piedade (1580-1661). Barrista beneditino que atuava em Salvador, Frei Agostinho transmitiu seus conhecimentos a seu discípulo, o monge carioca Frei Agostinho de Jesus (c. 1600-1661). Este, por sua vez, foi autor das primeiras imagens com características brasileiras, atuando em Pernambuco, na Bahia, no Rio de Janeiro e em São Paulo. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"No sertão paulista, distante das influências europeias, Agostinho de Jesus traduziu nas suas imagens os traços da sociedade mameluca local, composta por indígenas, europeus e mestiços, marcada pelo gosto da moda luso-asiática. O barro cinzento do planalto de São Paulo, pesado e com pouca coesão, foi adaptado às imagens de culto coletivo. Atendendo a uma necessidade técnica e plástica, o mestre produziu obras em bases muito largas, a fim de sustentar o peso dos cânones ornamentados com numerosas cabeças angelicais e volutas em caracol, cobertas por mantos generosos e rostos ingênuos, de capilaridades sinuosas, aproximando as feições humanas do sagrado. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Os santos do litoral brasileiro, a destacar as obras paulistas nos tempos das entradas e bandeiras, receberam grande influência da arte de Goa, antiga capital dos territórios portugueses na Ásia e palco do comércio de luxo das presas de marfim e lacas, desejadas por europeus e americanos. A rigidez do marfim, característica das curvas dos cabelos das Virgens, foi replicada no barro cozido policromado, nas pregas das vestes e nas imagens populares ou eruditas em madeiras duras, cítricas, extraídas da Mata Atlântica. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Assim, começamos a cronologia sacra na Fundação Maria Luisa e Oscar Americano apresentando uma escultura de Nossa Senhora da Sapiência ou Maestà – a Virgem em Majestade –, modelada pelo mestre Frei Agostinho de Jesus em meados do século 17. Sua fatura provém do Litoral Norte do estado de São Paulo, onde, no antigo Convento do Amparo, na cidade de São Sebastião, é venerada popularmente como Nossa Senhora dos Desamparados ou Montesserrate. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"A Maestà evoca as litanias de Maria, como a Sede Sapientiae – “Sede de Sabedoria” –, iconografia originada nas catacumbas romanas e relacionada à amamentação de Cristo ou a Salus Populi Romani, “Protetora do Povo Romano”, suposto ícone do início da era cristã. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"A Virgem em Majestade da Coleção Americano é um dos pontos altos da estatuária da Fundação. A peça, de terracota policromada, é modelada em forma cônica, repousando sobre generosa peanha em formato lunar, com suave panejamento ondulado e traços refinados, no espírito Maneirista-Barroco do século 17. Pelo emprego de expressões expansivas em lugar de linhas contidas, o Menino Jesus é apresentado solenemente altivo, imponente, em atitude de graça e consagração. O trono incrementa os adjetivos de realeza valorizados pelos filetes dourados do manto da Santa, em complemento às cores oficiais estabelecidas pela Igreja para a representação de Nossa Senhora: o azul Royal e o vermelho Grená́, simbolizando, respectivamente, o céu e a terra – em alusão às divindades sagradas envoltas em condições humanas. Os olhos orientalizados e os cabelos sinuosos completam o caráter mestiço da obra, que contém referências a várias etnias. Essa imagem em terracota seiscentista, com seu pedestal de madeira e fragmento ornado com cinco cabeças de querubins, foi destaque em uma exposição realizada de 10 de maio a 31 de julho de 2007 no Palácio dos Bandeirantes, sede do Governo do Estado de São Paulo, por ocasião da visita do papa Bento XVI. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Do período do Barroco joanino (1706-1750), encontram- se, nesse acervo, exemplares com abundante ornamentação fitomórfica, entalhes de folhas de acanto e conchas esgarçadas, peanha com dossel, base com cabeças de anjos e fragmentos retabulares. Há, ainda, imagens profusamente decoradas em esgrafitos: flores e ramagens carregadas pela complexidade do espírito catequético dos tempos da Contrarreforma – fervor e linguagem manifestos nos gestos, em um cenário de cariz pedagógico, em articulação com as narrativas do Evangelho e do hagiológico cristão. Inserem-se nesse contexto a imagem de Nossa Senhora do Carmo, procedente da Fazenda do Carmo, em Itaquera (SP), e uma escultura mineira de São Miguel Arcanjo do século 18, com sua balança sinalizando o peso das boas e más ações ao longo da vida, no julgamento das almas do purgatório. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Nos anjos tocheiros portugueses, com suas alusivas cornucópias, vislumbra-se a mobília religiosa presente nas iluminações das naves de igrejas, composta por bobeches, suportes de velas e lumes, distribuídas originalmente em pares sobre o chão no interior do templo, ladeando o altar-mor, a banqueta ou o trono. São mensageiros habitualmente descritos como guardiões do presbitério, em atitude de adoração, figurando um convite às celebrações da Liturgia. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Do Rococó́ da segunda metade do século 18, há a elegante rocalha brasileira, sinuosa e coroada com capitéis compósitos, monumentais quartelões de altar que se destacam no salão nobre, emoldurando uma tapeçaria de manufatura europeia da série Nouvelles Indes. Esse par de fragmentos em sequências de volutas, folhagens e flor de lis é originário da Igreja de São Pedro dos Clérigos, templo de arquitetura elíptica edificado na cidade do Rio de Janeiro pelo mestre Valentim da Fonseca e Silva (1745-1813), um dos principais escultores da arte colonial brasileira, impiedosamente demolida em 1944 para a abertura da Avenida Presidente Vargas. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Repousando em uma cômoda, o excepcional oratório-ermida em jacarandá́ é um dos principais exemplares de mobílias religiosas eruditas em museus paulistanos. Seu frontão monocromático de madeira nobre encerada, com espaldar vazado em guirlandas e volutas, representa a transição estilística de D. José I para os florais do reinado de D. Maria I, em fins do Setecentos. Na parte interna, policromada e dourada, buquês sequenciados à maneira dos estênceis relembram os tecidos bordados e adamascados das casulas eclesiásticas, ornamentos distribuídos na pintura da cenografia. O conjunto é ampliado pelas inusitadas portas decoradas que se abrem com seis cenas da Paixão de Cristo, em alto relevo, emoldurado com vidros, à maneira dos relicários. Nas peanhas internas, as imagens de Nossa Senhora das Dores e de São João Evangelista acentuam a dramaticidade do Crucificado em agonia. O ornato de acessórios em prata, cabochão guarnecendo uma pedra preciosa e base decorada em Arma Christi – as Armas de Cristo –, representa os instrumentos do martírio de Jesus. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Os retábulos e oratórios compõem as mobílias das igrejas, em sacristias, capelas ou residências, rememorando o passado clássico. Adaptados a partir dos arcos de triunfo romanos e sacralizados no culto cristão, representam a vitória da Ressurreição sobre a morte: paz, glória, alegria e vida eterna. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"No período colonial, os altares Barrocos atingem o ápice da ornamentação, em consonância com os sacramentos implantados pela Igreja e pelo Estado. No regime do Padroado Português, a Santa Sé delegava aos monarcas, por meio de bulas papais, a administração e a organização da religião Católica nos domínios de além-mar. Para isso, os administradores e clérigos recorriam a rituais atrativos e impactantes, performados em espírito teatral, alegórico e persuasivo: talhas profusamente douradas, banquetas com alfaias reluzentes e imagens ricamente estofadas eram destinadas à conversão, ao batismo de catecúmenos, à comunhão, aos mistérios e às exéquias. "}}],"version":"2.18.0"}
Rafael Schunk