Retratos

{"time":1747677058715,"blocks":[{"type":"paragraph","data":{"text":"Entre os muitos segmentos do acervo da Fundação Maria Luisa e Oscar Americano, um dos mais completos e complexos é a coleção de retratos, em que se destaca o núcleo voltado a membros das casas real e imperial do Brasil. Ligados ao estilo forjado nos séculos 17 e 18 a partir da corte dos Habsburgos, na Espanha, e dos Bourbons, na França, os retratos presentes na Fundação permitem compreender como a representação de monarquias e elites aristocráticas migrou da Europa para o Brasil no século 19, ganhando força com a chegada da família real portuguesa em 1808 e com o estabelecimento do regime imperial em 1822. Além de numerosos retratos em óleo sobre tela, a coleção possui um invejável conjunto de gravuras e de esmaltes, chegando até às pioneiras fotografias da segunda metade do Oitocentos. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"O exemplar mais antigo da coleção é o retrato do conde e príncipe João Maurício de Nassau-Siegen (1604-1679), governador do Brasil Holandês entre 1637 e 1643, cuja autoria permanece desconhecida. Maurício de Nassau é considerado o primeiro grande mecenas em terras brasileiras, tendo promovido artistas como Franz Post e Albert Eckhout, que realizaram pinturas que decoraram o Palácio das Duas Torres, sua residência no Recife. A tela mostra-o em perfil, com uma grande gola de rendas característica dos trajes flamengos do século 17, sem atributos militares, como um homem da corte. A coleção conta também com o retrato parcial de Henri de la Tour d’Auvergne, visconde de Turenne (1611-1675), marechal da França e grande líder militar nos reinados de Luís XIII e Luís XIV; a composição guarda imensa semelhança com o retrato em pastel de autoria – ou, ao menos, do ateliê̂ – de Robert Nanteuil, pertencente ao Museu do Louvre. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Excetuadas essas duas obras vinculadas a personagens do século 17, a coleção concentra-se especialmente em membros da família Bragança e seus cônjuges. Da retratística do século 18, o exemplar mais antigo é o óleo de D. Maria Ana de Habsburgo, rainha de Portugal, nascida arquiduquesa da Áustria, esposa do rei D. João V. Trata-se de um típico retrato feito a partir de modelos eruditos, muitas vezes produzidos em série por ateliês que supriam a necessidade de circulação da imagem dos soberanos em seus domínios territoriais. Tal prática, existente também nos clãs monárquicos na forma de presentes diplomáticos e lembranças familiares, é a razão de retratos de membros da realeza encontrarem-se em destinos tão distantes de suas cortes de origem. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Nas gravuras em papel da coleção, há um exemplo modelar dessa necessidade de difundir a imagem da monarquia. Trata-se da figura em corpo inteiro de D. João VI, feita após sua sagração como rei no Rio de Janeiro, em 1816. A gravura, de autoria de Charles Simon Pradier, foi realizada a partir de um pequeno retrato do monarca, hoje pertencente ao Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro: uma pintura em óleo sobre tela de Jean Baptiste Debret, que nunca chegou a ser realizada em grandes dimensões – como mandava a tradição desde o século 16 –, mas serviu de matriz para a produção de milhares de gravuras que a reproduziram em papel. Monarca sagrado na América, a imagem de D. João VI deveria ser rapidamente difundida, não apenas nas cortes europeias reestabelecidas após a queda de Napoleão, mas em todo o mundo português, do Brasil a Macau, África e Índia. Sua legitimidade é denotada já́ pela escolha da pose, inspirada diretamente no cânone definido desde os retratos de Luís XIV, ancestral de D. João VI. Debret, apesar de oriundo do ambiente napoleônico e da escola neoclássica de seu primo Jacques-Louis David, executou nesse retrato a mais pura convenção bourbônica, certamente exigida pelo encomendante. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Todas os retratos produzidos sob o reinado de D. Maria I e de D. João VI revelam a necessidade de difundir a imagem da monarquia portuguesa, especialmente após seu refúgio na América, demanda que ganhará ainda mais força com a Independência e a instalação do regime imperial em 1822. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"A coleção dispõe também de um notável conjunto de retratos a óleo relativos ao Primeiro Reinado, no qual destacam-se as representações de D. Pedro I como imperador do Brasil, como rei de Portugal ou como duque de Bragança. O retrato atribuído a Simplício Rodrigues de Sá, pintor da casa imperial, apresenta D. Pedro I coberto de condecorações, portando a placa do Cruzeiro do Sul e, sobre as faixas, a insígnia do Tosão de Ouro, cravejada de diamantes, safiras e rubis orientais – marca exclusiva dos reinantes católicos, que hoje se encontra exposta no Palácio Real da Ajuda, em Lisboa. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"De maneira semelhante ao que ocorrera durante o reinado de D. João VI, foram abundantes no Primeiro Reinado as gravuras representando D. Pedro I, imperatrizes e príncipes, relativas tanto à permanência da corte no Brasil quanto ao seu exilio na Europa após a abdicação. Ainda no que diz respeito ao papel legitimador das gravuras em ampla circulação no Brasil, um dos exemplares mais significativos da coleção traz D. Pedro I ao lado de D. Maria da Glória – futura Maria II, rainha de Portugal –, representando o papel fiador do pai em relação à filha, ainda criança. Trata-se, na verdade, de uma alegoria à Constituição do Brasil de 1824 e à Constituição de Portugal de 1826, realizada por Domingos António de Sequeira em 1826; a legenda da peça enaltece o duplo monarca: “Pai de dous povos, em dous mundos grandes”. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Integram a coleção retratos muito raros dos príncipes imperiais durante o Primeiro e Segundo reinado. A representação de D. Pedro de Alcântara e da princesa D. Francisca por Arnaud Julien Pallière, óleo datado de 1826, ainda é marcada pela tradição de figurar os retratados em túnicas classicistas e poses etéreas, com ecos distantes dos retratos da corte de Luís XVI por Jean-Marc Nattier. Por sua vez, D. Maria da Glória, a rainha D. Maria II, é representada em tenra idade, já́ com os predicados de sua condição monárquica – a faixa ou banda do tríplice condecoração das ordens de Cristo, Aviz e Santiago da Espada – em pintura de autor desconhecido. O retrato, por Claude Joseph Barandier, de D. Afonso, príncipe imperial do Brasil e herdeiro de D. Pedro II até seu falecimento prematuro aos dois anos de idade, mostra-o em trajes de bebê; ao fundo, a baía de Guanabara marcada pelo Pão de Açúcar, sede do império que, esperava-se, seria seu no futuro. Sua irmã̃ mais nova, Leopoldina, foi retratada em óleo em 1851 pelo pintor austríaco Ferdinand Krumholz, com um periquito tropical nos braços e uma densa floresta em torno de si, alusões ao império de sua família. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Os retratos de D. Pedro II representam-no em diversos momentos de sua vida. Um deles, de autor desconhecido, traz o monarca ainda muito jovem, em época próxima à declaração da maioridade, vestido com a farda imperial e portando as insígnias do Tosão de Ouro, das ordens bourbônicas e do Cruzeiro do Sul. A prática de difusão da imagem dos soberanos Pedro II e Teresa Cristina também está presente em óleos de fatura mais rápida, que decoravam as residências de seus apoiadores políticos e repartições públicas do território imperial. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Os padrões estabelecidos pelos retratos a óleo e gravuras foram aproveitados em diversos exemplos de miniaturização das imagens monárquicas, utilizados como pequenos objetos decorativos, caso do excepcional par de retratos bordados do príncipe regente D. João e de D. Carlota Joaquina, ou como joias para uso junto ao corpo. Entre eles, destacam-se, ainda, uma caixa com o retrato de Pedro I, muito próximo ao óleo de Simplício Rodrigues de Sá pertencente ao Museu Imperial de Petrópolis; um bracelete em marfim com a imagem da princesa Isabel muito jovem, pintada a óleo; e broches representando a Rainha Maria I e Pedro II, ainda príncipe imperial, na primeira infância. Fotografias em albumina em formato cabinet portrait e carte de visite também foram utilizadas para difundir a imagem de membros da família imperial, combinando o interesse político em fazê-la conhecida e reconhecida com o interesse dos estúdios fotográficos, que vendiam exemplares também pela honra de terem sido escolhidos para serem fotógrafos da monarquia. Na coleção, há um raro ambrótipo de Insley Pacheco realizado em torno de 1855, representando as princesas Isabel e Leopoldina, técnica inicial da trajetória fotográfica em que a imagem positiva em prata era depositada sobre uma placa de vidro, num efeito de impossível reprodução. Era, assim, um artefato único, custoso e exclusivo. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Além dos membros da família imperial, a coleção também apresenta retratos do círculo de aristocratas por ela nobilitados. Duas dessas telas representam Luísa Margarida de Barros, condessa de Barral: quando menina e já idosa. Preceptora das princesas Isabel e Leopoldina, gozou de ampla circulação na corte do rei Luís Felipe d’Orléans. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"A tradição dos retratos a óleo manteve-se no século 20, atravessando as crises das monarquias e o colapso das casas aristocráticas, suas tradicionais compradoras. A fotografia, embora representasse uma imensa novidade e permitisse difusão das imagens da monarquia com mais precisão que as antigas gravuras, não tinha, certamente, a aura de solenidade exclusiva das imagens a óleo ou pastel, o que estendeu o uso dessas técnicas para as novas gerações de encomendantes. Os retratos a óleo permaneceram mesmo nos circuitos modernistas, em que pintores como Portinari retiravam parte importante de seu sustento das encomendas feitas pelas elites brasileiras. O mesmo pode ser dito de tantos outros como Dimitri Ismailovitch, Flávio de Carvalho, Lasar Segall e Anita Malfatti, bem como de alguns artistas de linhagem acadêmica, como Oscar Pereira da Silva. Nessa continuidade, podem inserir-se os retratos a óleo de Maria Luisa Ferraz Americano de Caldas, realizado pelo pintor austríaco Toni Koegl em 1951, e de Oscar Americano de Caldas Filho, feito por Nicola Carone. Enquanto Oscar figura como um homem público, em terno de uso típico em espaços profissionais e cerimonias formais, sua esposa está representada em traje de gala e joias discretas, em pose fluida destacando o colo, com braços esguios e traços fisionômicos que miram o observador. O par de retratos forma, assim, um típico pendant dos padrões masculino e feminino da representação visual nos meios de maior poder econômico e social do século 20. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Por fim, a coleção da fundação abriga um amplo espectro de memórias e imagens vinculadas às famílias real e imperial brasileiras. A presença do retrato de um popular, chamado Caipira pitando, realizado por José Ferraz de Almeida Junior, documenta o interesse do pintor ituano – prematuramente falecido em 1899 – pelos tipos característicos do interior paulista, contrastantes com a dinâmica do avanço da urbanização, das grandes fazendas de café́ e das ferrovias. Obra de grande lirismo, esse retrato representa um homem comum cujo nome não chegou aos nossos dias, mas que permanece como lembrança e testemunho dos muitos brasileiros dos quais nem sequer um retrato restou. "}}],"version":"2.18.0"}

Paulo Garcez Marins